Embora a legislação brasileira não tenha acompanhado o desenvolvimento da chamada herança digital, a vida em sociedade passou a exigir proteção a tal direito.
Atualmente, quase metade da população mundial usa as redes sociais de alguma forma, o que corresponde a quase 4 bilhões de usuários ativos. Agora imagine que cada uma dessas pessoas vêm formando, de sua forma particular, um grande patrimônio virtual, que envolve fotos, vídeos, áudios, games, músicas, filmes e até mesmo mensagens privadas, senhas e moedas virtuais.
Esse comportamento fez do planejamento sucessório e da herança digital uma discussão inevitável. Da mesma forma como o patrimônio acumulado em vida recebe atenção acerca do seu destino após a morte, em razão de eventuais conflitos de partilha, o patrimônio virtual também precisa ser pensado e planejado. E isso independe de valoração econômica ou não.
Regulamentação
Nenhuma lei civil brasileira regulamenta o tema. Nem mesmo a nova Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) – que entra em vigor em 2020 para alterar o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) – menciona o assunto. Sem a devida previsão legal, não há respaldo para a proteção do conceito no mundo dos fatos.
A herança digital nas redes sociais
São muitas as perguntas que tornam inevitável a necessidade de se incluir os bens digitais na herança tradicional. No caminho de uma solução, as próprias redes sociais já deram um passo à frente e permitem ao usuário decidir, quando ainda vivos, a forma como a sua conta será gerenciada após a morte.
O Facebook, por exemplo, oferece duas opções por meio do aplicativo “If I die”. Assim, o usuário pode optar por manter a conta ativa ou excluí-la.
A primeira transforma o perfil da pessoa em um memorial. Isso faz com que a linha do tempo do falecido receba homenagens e todos os seus posts anteriores possam ser visualizados. Para isso, é preciso, no entanto, que alguém faça a manutenção e o acompanhamento do que acontece na página. Essa pessoa, no caso, seria escolhida de maneira antecipada pelo próprio falecido, no momento de optar pelo destino da conta no aplicativo.
Já a segunda opção permite a exclusão do conteúdo por um representante que comprove a morte do usuário. Assim, ao mesmo tempo, pode-se instituir um legado, apontando um “herdeiro digital”, a quem será dado poderes para movimentação e atualização do perfil.
O Twitter, por sua vez, autoriza que os familiares baixem todos os tweets públicos e solicitem a exclusão do perfil. Já o Instagram autoriza a exclusão da conta, ou, então, a transformação do conteúdo em um memorial, mediante o preenchimento de formulário online. Basta apenas que a pessoa interessada comprove ser membro da família.
O direito das sucessões
Como se sabe, o direito sucessório é, a grosso modo, a garantia da transmissão de patrimônio de determinada pessoa após a sua morte.
Portanto, quando a pessoa não manifesta sua vontade em vida, e não há testamento, a sucessão recebe o nome de legítima, presumindo a vontade do falecido. E a sucessão legítima ocorre em decorrência de lei, com força do art. 1.788 do Código Civil. Diz tal dispositivo:
Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.
Vocação hereditária
Assim, fica estabelecida a ordem de vocação hereditária. No Código Civil, essa ordem está prevista no art. 1.829, que deve ser interpretado junto com o Recurso Extraordinário 878.694, do Supremo Tribunal Federal (STF), que equiparou a união estável ao casamento. Essa ordem de preferência, portanto, dá-se nessa ordem:
• descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente;
• ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro;
• cônjuge ou companheiro sobrevivente;
• colaterais.
No entanto, em relação ao direito sucessório online, a grande dúvida diz respeito aos dados da pessoa. Eles podem ou não compor essa herança do falecido, numa espécie de herança digital?
O testamento digital
O termo ‘testamento digital’ ainda não é reconhecido no direito brasileiro. Mesmo assim é uma realidade cada vez mais presente no mundo social. A lei em vigor, hoje, não determina que o testamento deve se limitar apenas aos bens tangíveis. Pelo contrário. O art. 1.857 do Código Civil prevê que
Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
Portanto, se houver testamento capaz de manifestar a vontade do falecido em relação à sua herança digital, ele deve ser respeitado. E isso independe do ordenamento jurídico reconhecer ou não o conceito. O que vale, neste caso, é a manifestação de vontade do de cujus.
Tipos de herança digital
O Código Civil, em seu art. 1.791 menciona que a herança engloba um todo unitário, o que incluiria não só o patrimônio material do falecido, como também os bens imateriais. Se o Judiciário entender que é possível acrescentar os materiais e informações acumuladas ao longo da vida digital da pessoa, então, a chamada herança digital deve seguir a ordem de preferência apresentada.
No entanto, o patrimônio digital de uma pessoa vai além, hoje, dos bens móveis e imóveis. O acervo digital pode ser, por exemplo, dividido em, ao menos, dois tipos.
Os de valor econômico envolvem o acúmulo de materiais de autoria própria, como músicas, poemas, textos e fotos. Ou, até mesmo, moedas digitais, como é o caso das bitcoins. Neste caso se justificaria a composição da herança, por exemplo, até pelo perfil econômico do material acumulado, que daria vazão à partilha. Afinal, se há valor patrimonial, cabe sucessão.
Por outro lado, há também os bens de valor sentimental ou afetivo. Isso incluiria as conversas online, a gestão das redes sociais, os posts e as senhas de e-mails e outros aplicativos. No entanto, esse conjunto de informações acumuladas não sustenta a composição do interesse sucessório e de uma eventual partilha. Mesmo assim, não deixam de representar um patrimônio que deve receber um destino.
O que diz a jurisprudência
Embora recente, os primeiros casos de herança digital começam a pipocar no Judiciário brasileiro. Vez ou outra, algum familiar recorre à Justiça para requerer a quebra do sigilo de determinada conta online pessoal. E a ideia de que a herança digital do falecido possui natureza personalíssima já se manifesta, aos poucos, no entendimento de alguns magistrados brasileiros.
Portanto, como é possível verificar, alguns magistrados já defendem que os bens virtuais personalíssimos devem ser tratados com a devida privacidade e respeito à intimidade da pessoa falecida.
Os projetos de lei sobre herança digital
Diante da falta de regulamentação, o Congresso Nacional já se move para disciplinar a herança digital no âmbito da sucessão legítima. Há, na Câmara dos Deputados, três projetos de lei tramitando nesse sentido. Os três, no entanto, entram no mérito de uma questão fundamental: a titularidade do material que é construído em vida pela pessoa na internet.
No entanto, o teor principal dos projetos entra em conflito direto com o direito da privacidade, da imagem e de outros direitos da personalidade do morto.
1. Inserir dispositivo ao Marco Civil da Internet
O mais recente, o PL 7.742, data de 2017 e sai em defesa da exclusão das contas online do usuário falecido como primeira opção em caso dele não ter deixado testamento. Apenas como exceção, os familiares poderiam pleitear o acesso a tais contas. Essa previsão viria expressa na inclusão de um novo dispositivo de lei ao Marco Civil da Internet. O art. 10-A, portanto, teria a seguinte redação:
Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.
- 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.
- 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.
-
3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.
Tal projeto, no entanto, se encontra na fila de pautas da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.
2. Inserir três dispositivos ao Código Civil
Além disso, junto a tal projeto mencionado tramita também o PL 8.562, de 2017. Essa iniciativa carrega o texto de um dos primeiros projetos de lei a tramitar na Casa sobre o assunto, o PL 4.847. A proposta, datada originalmente de 2012, pretende incluir três novos artigos ao Código Civil de forma a inserir o conceito da herança digital, de fato, no ordenamento jurídico.
Assim, o art. 1.797-A deveria prever um rol exemplificativo dos bens que podem compor o acervo. O texto do dispositivo teria essa proposta:
Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:
I – senhas;
II – redes sociais;
III – contas da Internet;
IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Por se tratar de um rol meramente exemplificativo, portanto, ele não excluiria outras opções. Seria o caso, por exemplo, dos contatos, das fotos e dos textos construídos pelo de cujus.
Em sequência, o art. 1.797-B prevê a real possibilidade da chamada herança digital. Diria o dispositivo:
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.
Por fim, o art. 1.797-C pretende sugerir as opções deixadas ao herdeiro, quais sejam:
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I – definir o destino das contas do falecido;
a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;
b) apagar todos os dados do usuário ou;
c) remover a conta do antigo usuário.
3. Inserir um dispositivo ao Código Civil
Por sua vez, o PL 4.099, de 2012, trata a herança digital no âmbito da sucessão legítima. A ideia é atribui-la aos herdeiros do falecido, que teriam total liberdade quanto à sua gestão e destino. Tal orientação seria prevista por meio da inserção de um parágrafo único ao art. 1.788 do Código Civil com a seguinte redação:
Art. 1.788, parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança.
A proposta aguarda apreciação no Senado Federal.
Assim, como se pode perceber, todas as três proposições atribuem o poder de decisão a respeito do destino da herança digital aos herdeiros do falecido. Essa previsão, no entanto, já gerou manifestações contrárias na advocacia.
Parecer contrário
No fim de 2017, ao analisar o inteiro teor das proposições, o advogado Pablo Malheiros Cunha Frota encaminhou ao Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) um parecer contrário a elas. Para ele, tratam-se de direitos essenciais e personalíssimos de alguém que não pode decidir por si mesmo. Portanto, tais direitos não deveriam ser transmitidos a herdeiros de forma automática, como previsto. Eles, portanto, deveriam ser imediatamente extintos com o falecimento.
Em defesa dessa teoria, o advogado apresentou sete argumentos que justificariam a recusa para os projetos de leis. Seriam eles:
1. Não houve manifestação de vontade do falecido
Os projetos autorizam que todo o acervo digital do morto transmita-se automaticamente aos herdeiros, violando os direitos fundamentais à liberdade e à privacidade, notadamente nas hipóteses em que o bem digital é uma projeção da privacidade e não houve declaração expressa de vontade ou comportamento concludente do seu titular, autorizando algum herdeiro ou terceiro a acessá-lo e geri-lo.
2. Vai expor a privacidade de terceiros
Terceiros que interagiram com o falecido em vida também terão as suas privacidades expostas aos herdeiros.
3. Repassa a responsabilidade para o Estado decidir
É necessário o respeito às eficácias pessoal, interpessoal e social da vida privada, o que concretiza a liberdade positiva de cada um decidir os rumos de sua vida, sem indevidas interferências externas da comunidade, particular ou do Estado, no qual essa liberdade se vincula intersubjetivamente com a comunidade, o Estado e o particular.
4. Transforma o direito de personalidade em bem patrimonial
Os projetos de lei pretendem transmudar o regime de direito de propriedade do Direito das Coisas para os direitos da personalidade, uma vez que o direito de personalidade do falecido transforma-se em bem patrimonial, pois a intimidade e a imagem da pessoa morta servem como fonte de riqueza econômica.
5. Pode não respeitar a vontade do falecido
Os familiares ou terceiros somente devem ter o direito de gerenciar o acervo digital se houver declaração expressa do falecido, por instrumento público ou particular, inclusive em campos destinados para tais fins nos próprios ambientes eletrônicos, sem a necessidade de testemunhas, ou se houver comportamento concludente nesse sentido.
6. Não permite que os bens sejam excluídos sem interferência do direito à privacidade
Caso tal declaração ou comportamento não estejam presentes, ou estejam atingidos por problema relativo à sua validade ou eficácia, todo o acervo digital que seja expressão da personalidade não deve ser alterado, visto ou compartilhado por qualquer pessoa.
7. Deixa à deriva a vontade do falecido, mesmo que ela não tenha sido expressa
Bens imateriais que projetem a privacidade de quem falece não devem e não deveriam ser acessados pelos herdeiros ou por terceiros não havendo manifestação de vontade do autor da herança.
Conclusão
O avanço tecnológico tem levado a sociedade a gerar um acervo imenso de ativos e valores digitais. Essa mudança no comportamento é um sinal claro de que, cada vez mais, as lembranças deixam de ser tangíveis.
Essa nova realidade desafia o direito sucessório. As novas formas de patrimônio e herança exigem um posicionamento e uma resposta do ordenamento jurídico brasileiro. Cada vez mais, ele precisa se adaptar às necessidades demandadas por esse novo cenário.
Uma legislação específica para regulamentar o instituto daria fim às dúvidas e receios que envolvem o risco de violação ao direito à e à proteção da privacidade da pessoa falecida. É preciso dar atenção, no entanto, aos efeitos e consequências que os atos virtuais podem causar na vida real. E, claro, tratá-los com respeito e seriedade.
Fonte: https://blog.sajadv.com.br/heranca-digital/
Espero que vocês gostem das minhas dicas.
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